Muitas pessoas quando falam da morte da Elza Soares, falam,
inevitavelmente, do Garrincha, tanto, acredito, por ser este um ídolo brasileiro
do futebol, mas também como aquela atitude típica de nossa sociedade: a de sempre
ver as mulheres em relação a seus parceiros, quase como se fóssemos meros apêndices
dos homens.
Em 2021, eu fiz um curso dado pela Pinacotece de São
Paulo sobre as mulheres no acervo da Pinacotece e me impressionou em como
várias artistas com obras imensamente interessantes só eram conhecidas por ser
mulheres ou amantes de determinados pintores. É como se toda a sua trajetória,
seus feitos, personalidades fossem colocados em relação ao pintor, como se não
existisse uma vida e personalidade independente , elas eram meros
apêndices de pintores famosos brasileiros.
Já em 2022, quando da morte da Elza Soares, a história
dessas mulheres me veio à mente. Pensei em como tantas e tantas mulheres foram relegadas
pela história da arte e pela história brasileira oficial para dar lugar à exaltação de homens; e como esse discurso se perpetua até hoje.
No youtube, ouvi no canal do Paulo Rezzuti um vídeo sobre a imperatriz Teresa Cristina. Nele, o escritor mostra como foi contruída uma imagem histórica de uma mulher apagada, sem nenhum protagonismo. É quase como se Teresa Cristina aparecesse na história, unicamente, por ser mulher de D.Pedro II. Todas as suas características pessoais ficaram apagadas para a construção de uma figura pública que não poderia ofuscar o imperador.
Em pleno século XXI, os mesmo discursos retrógrados continuam sendo propagados e mulheres continuam sendo colocadas à margem a favor de algum homem. Não há interesse em contar suas histórias e em vê-las sob outros viés, que não o de mães e esposas. Esse reducionismo, aparentemente bobo, que é recorrente em todos os períodos da sociedade ocidental, acaba construindo uma "imagem" da mulher na história, sempre em contraponto ao homem.
Ao falar de Elza como "a mulher do Garrincha" em seu obituário, diminuimos, minimizamos a cantora que foi, sua importância para a música
brasileira, para o feminismo, para a luta negra e LGBT. Dessa forma, apagamos todo o seu percurso para encaixá-la no papel da "esposa de alguém importante". Essa associação ao nome do Garrincha tem um peso ainda maior quando lembramos que o motivo da separação do casal, foi porque ele batia nela.
Não, não consigo aceitar que Elza, com todo o peso que seu nome carrega, seja lembrada em associação com quem, em vida, ela fez questão de se afastar. Com quem em um acidente de carro, estando alcoolizado, foi responsável pela morte de sua mãe.
Em que sociedade,
minimamente sadia, faríamos uma homenagem a um ser humano ímpar, enaltecendo
justamente o casamento que teve com um homem
abusivo e responsável pela morte de sua própria mãe? Em uma sociedade
sã, só mencionaríamos Garrincha para falar do horror, da opressão que mulheres
como Elza viveram e vivem dentro dos próprios lares com seus parceiros. Usaríamos
Garrincha apenas como exemplo dos execráveis casos de violência doméstica que
terminaram em impunidade para o homem; e
em como esses ainda são brindados com uma imagem benevolente na história
brasileira.
É um horror termos que todo dia dizer o óbvio, mas quando a
realidade se encontra cada vez mais distorcida e os valores éticos e morais cada
vez mais deturpados, é necessário que expliquemos a verdade retumbante, é preciso
que enfatizemos o óbvio, para que não se use das desculpas mais esdrúxulas para
realizar a defesa do que não deveria de maneira alguma ser defendido. Violência
doméstica é crime e sentimentos de posse e de coisificação da mulher não devem
e não podem nunca ser confundidos com amor. O amor é generoso, carinhoso, compreensivo. O amor diz respeito à partilha, a dar a liberdade do outro de ser quem ele é. Todos somos ou deveríamos ser livres, de qualquer amarra emocional ou física.
O amor não se confunde com violência e a violência não se justifica, se combate.
Editado em: 23/07/2023
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